quarta-feira, 31 de março de 2010

O Cristo de Paulo: Cristo, o novo Isaac






"A convicção de Paulo de que estava liberto do pecado e imerso no amor de Deus se fundava na sua crença de que 'Cristo morreu, ou melhor... ressuscitou... está à direita de Deus... e intercede por nós" ( Rm, 8:34). Em última análise, equivale a um drama mítico de salvação.(...) Os mitos paulinos não dependem do que Jesus ensinou ou fez, mas das consequências, tidas como providenciais, do que lhe aconteceu. Neste particular, sua percepção é única e claramente distinta da dos Evangelhos sinópticos e de João. Nos Evangelhos, Jesus é um mestre que dá sua mensagem aos seus seguidores,; nas epístolas, é o objeto da mensagem concebida e disseminada por Paulo, com exceção de uns poucois exemplos nos quais ele afirma transmitir as "palavras do Senhor". Não obstante, embora tivesse a consciência de ser o pai dos seus filhos espirituais gentios, Paulo tinha plena consciência de que não era seu salvador. "Paulo teria sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizado em nome de Paulo?", pergunta ele aos coríntios ( 1 Cor, 1:13).

Para compreender a mente de Paulo, é preciso estar familiarizado com algumas das pressuposições da cultura religiosa judaica. Tanto na Bíblia como no judaísmo pós-bíblico inicial, o pecado era visto como uma rebelião contra Deus, punido com a doença e com a morte. A virtude era resultado da obediência a Deus, recompensada pela saúde e vida longa e feliz e, na época de Jesus e Paulo, pela perspectiva de vida eterna ou existência renovada num corpo ressurrecto. Esta última crença era advogada pelos fariseus ( a cujo grupo Paulo afirmava pertencer), mas não por outros grupos, como os saduceus, que rejeitavam a idéia de vida após a morte, e os essênios, que, segundo Josefus, só acreditavam na ressurreição da alma. A evidência doa Manuscritos do Mar Morto é equívoca a este respeito, e em todo caso são poucas e dispersas as alusões à ressurreição corpórea. Porém, ao mesmo tempo que, no meio gentio de seu ministério, Paulo não teve grandes dificuldades em abandonar outros preceitos básicos fariseus, como a centralidade da observância estrita da Torá ( circuncisão, leis rituais, etc), a doutrina da ressurreição corpórea tornou-se uma parte indispensável de seu majestoso drama de mistério.

Um segundo fator principal subjacente na compreensão paulina da cruz como sacrifício redentor é a narrativa da imolação pretendida mas não realizada de Isaac por seu pai Abraão. A cruel história é preservada no Capítulo 22 da Gênesis, mas o que é mais importante é a sua reinterpretação no período intertestamental, e posteriormente na era rabínica, então conhecida como a Akedah de Isaac. A diferença fundamental entre o registro bíblico e o relato reformulado pelos mestres judeus a partir do século II a.C- no Livro dos Jubileus, nos Manuscritos do Mar Morto, em Josefus, na literatura Pseudo-Filo e rabínica- diz respeito ao papel de Isaac no drama. Em vez de ser um garoto, inconsciente do que acontecia, Isaac é retratado como adulto- com vinte e cinco anos em Josefus, trinta e sete, para os rabinos- que foi informado pelo pai da ordem de deus, Isaac consentiu com alegria e correu jubiloso para o altar; pediu a Abraão para amarrar suas mãos e estendeu o pescoço para a faca de Abraã. Assim, o sacrifício que Abraão deveria oferecer tornou-se também a fortiori a auto-imolação ( inacabada) de Isaac.

A tradição judaica dá outros detalhes desconhecidos da Bíblia, mas de enorme significado. O primeiro diz respeito ao efeito do auto-oferecimento de Isaac. Toda libertação futura do povo judeu e sua salvação messiânica final seriam vistas como decorrentes do mérito do evento sacrificial da Akedah.A cada vez que evocava a Akedah de Isaac, Deus estaria mostrando misericórdia para com seus filhos. A idéia expressa numa oração posterior era certamente familiar entre os judeus do primeiro século: "Se os judeus forem culpados e estiverem a ponto de ser mortos, lembrem-se de Isaac seu pai, que estendeu o pescoço no altar para ser morto em seu nome ( grifos meus). Que a imolação de Isaac tome o lugar da imolação de seus filhos" ( Êxodo Rabbah, 44:5).

Em outras palavras: a disposição ao sacrifício de Isaac foi transformada , no pensamento religioso judeu, num ato de redenção de validade permanente para todos os seus filhos, até a chegada do Messias.O segundo elemento novo, inserido na história já no século II a.C ( Jubileus 17:15, 18:3),é a data, determinada ao mês e ao dia, da Amarração de Isaac. Ela ocorreu no décimo quinto dia do primeiro mês ( Nisan), data em que a Lei de Moisés ordenaria subseqüentemente a celebração da Páscoa.

Como a versão reformulada do sacrifício de Isaac era uma idéia familiar entre judeus do primeiro século, Paulo pôde formular o seu preceito sobre a morte de Jesus na cruz,livremente sofrida, como a realização ( grifo meu) perfeita da auto-oferta redentora de Isaac. Porém, aos olhos de Paulo, a marca distintiva fundamental do sacrifício de Jesus era o seu universalismo. Ele afetava toda a espécie humana, e não apenas ( ou principalmente) os judeus, conforme se presumia no caso de Isaac."


... a continuar...

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