quarta-feira, 31 de março de 2010

Do Cristo morto



" De fato, é difícil não ver em certas passagens de Paulo alusões à narrativa reinterpretada de Abraão-Isaac na Gênesis. A afirmativa de Paulo na epístola aos romanos "Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Quem não poupou o próprio Filho e o entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com ele? ( 8:31-2)., se apóia em Gênesis 22-16: "Juro por mim mesmo, diz o Senhor; porque me fizestes isto, porque não me recusastes teu filho, teu único, eu te cumularei de bênçãos". O verbo grego usado por Paulo em conexão com Deus e Cristo (aqui respectivamente traduzido por "poupar" e "recusar") é textuamente o mesmo usado na versão septuaginta de Gênesis 22-16 a propósito de Abraão e Isaac; isto foi explicitamente reconhecido no século III por Orígenes, o maior especialista bíblico da Antiguidade. De novo, "Cristo nos resgatou... a fim de que a bênção de Abraão se estenda aos gentios" ( Gl 3:13-14) é coerente com Gênesis 22:18: "Por tua posteridade ( Isaac) serão abençoadas todas as nações da terra". A óbvia influência da história reformulada de Isaac na mente imaginativa de Paulo parece justificar a conjectura de que Gênesis 22 foi o texto aludido por ele sem citar capítulo e versículo: "Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras" ( 1 Cor, 15:3). Isto também dá conta da predileção dos antigos padres da Igreja, entre eles Tertuliano, Cirilo de Alexandria e Agostinho em verem em Isaac uma prefiguração ou tipologia de Jesus.

Tendo descoberto o molde usado por Paulo para forjar sua teologia da morte expiatória de Jesus, torna-se mais fácil seguir o seu pensamento. Na visão de Paulo, "o salário do pecado é a morte"
(Rm 6:23)., e como morte foi e sempre será o fado do homem- "O último inimigo a ser destruído é a morte" ( 1 Cor 15:26)- decorre que todo ser humano deve necessariamente ter pecado. Porém, esta síndrome pecado-morte tomou uma forma e uma significação inteiramente novas, por causa da morte de Cristo na Cruz. Para Paulo, o Filho obediente e sem pecado de Deus fez-se à imagem da "carne pecaminosa" e ele, "que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado" ( 2Cor 5:21). O propósito de Deus neste drama cruel era condenar o "pecado na carne" ( Rm 8:3)., submetendo Jesus à morte na Cruz. O Cristo crucificado primeiro consente em " maldição para nós" e depois nos resgata da "maldição da Lei" ( Gl, 1:4). Então, todo cristão que se une pela fé à morte de Cristo participa ( grifo meu) misticamente de sua morte e ressurreição. Nas próprias palavras de Paulo, " a caridade de Cristo nos compele, quando consideramos que um só morreu por todos e que, por conseguinte, todos morreram. Ora, ele morreu por todos a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles" (2 Cor 5:14-15).
(...) O foco paulino é absoluto: a principal preocupação de Paulo não é o Senhor ressuscitado e glorificado, mas o Jesus que expirou na cruz. "Pois não quis saber de outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" ( 1 Cor 2:2).

Geza Vermas, As várias faces de Cristo

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