domingo, 29 de novembro de 2009

A escritura e a diferença




"Aperiam in parabolis os meum/ eructabo abscondita a constitutione mundi".

( Sal., 78,2; Mat., 13, 15.)

Jesus repete as palavras do Profeta- intencionalmente. Mas qual o sentido desta repetição? A pergunta é fundamental, pois até as palavras extremas- as palavras gritadas na hora nona da Cruz ( Mat., 27,46) repetem o início do Salmo 22, de Davi.
Em Jesus, a repetição sublinha o distanciamento, a diferença. A palavra de Jesus não é a do Profeta, não é a do Antigo Testamento. É Outra. E de uma alteridade que não permite mediação, mas somente um rígido aut/aut ( ou/ou). O episódio do discípulo que pede a Jesus permissão para ir sepultar o pai e ouve uma resposta brusca- "Segue-me e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos" ( Mat, 8, 22)- é sumamente instrutivo. Mesmo o ato de piedade mais antigo é considerado vão se, e na medida em que, pertence ao mundo. Ao Mundo da Lei, do visível. "Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fito de serdes vistos por eles" ( Mat, 6,1). (...) O imperativo de "dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" não tem o significado banal de distinguir duas Cidades,a religiosa e a política, mas o propósito profundo de marcar a diferença insuperável entre o interior e o exterior, a consciência e o mundo" : "os cuidados do mundo sufocam a palavra, que fica infrutífera" ( Mat., 13, 22).

Aperiam in parabolis os meum- a palavra de Jesus não é ponte entre exterior e interior, consciência e mundo; pelo cpontrário, é a espada que os cinde. Jesus fala por parábolas, isto é, de modo oblíquo, pois tem consciência de que aquilo que tem a dizer não é dizível na língua do mundo- na única língua que há. (...) aos discípulos que lhe perguntam porque das parábolas, Jesus responde que eles o entendem porque conhecem "os mistérios do reino", mas não os outros, "que vendo não vêem e ouvindo não ouvem" ( Mat., 13, 10-13).
(...) Em verdade, Jesus , ao contrário do que se possa supor, fala a todos e para todos. Compreendem-no, porém, apenas aqueles que entendem, para além do significado explícito das palavras ( da Lei, destinada a regrar o visível) os mystéria, aquilo que nas palavras se re-vela continuamente. Os que compreendem que palavra é por n atureza dúplice, oblíqua, mentirosa. Pois o divino não é traduzível em linguagem. Como bem expressa João: "A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevalecem contra ela" ( João, 1, 5)
(..) Quando Jesus anuncia pela primeira vez a sua morte- a sua morte para o mundo e no mundo já desde sempre ocorrida- a Pedro que, perturbado, lhe diz: "Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá", ele replica: "Arreda, Satanás; tu és para mim transtorno ( skándalon), pois não cogitas das coisas de Deus , e sim dos homens" ( Mat. 16, 23).
Satanás aqui designa o mundo dos homens. Das coisas humanas. O reino da exterioridade. Da Lei. (...) Para o próprio Jesus, o mundo é insídia e armadilha- por isto ele o teme. Por isso tem de falar de sua morte. E de sua ressurreição. Que não é um retorno à vida, um renascer, após a morte do corpo. A ressurreição consiste na própria morte: a morte para a exterioridade da Lei, que é vida na interioridade da fé, ou seja, da consciência."


Viincenzo Vitello, Contribuição para uma topologia do religioso: Deserto, Ethos, abandono


... mas certamente este não é o Jesus judaico, o Jesus de Marcos e de Mateus ( ou parte de Mateus), e sim o de João e Paulo...Jesus, desta perspectiva subjetivista, é um antecessor de Kierkegaard?, aliás filho de outra cisão- ou abjuração-, do protestantismo, assim como o cristianismo foi uma abjuração/cisão/heresia do judaísmo? ...é preciso retomar a genealogia dos heresiarcas, meus amigos...

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